O canto do galo invade novamente o meu sono e atua em meu sonho afastando os elementos de seu lugar mais natural. E, embora eu saiba que o galo canta por instinto, e não age contra a mim, a ordem jurídica e política ou moral - acordo mal.
O pobre galo não é mau, nem é nada. Ele não cria nem destrói sociedades, ele não ameaça nem oferece salvação. Ave burra e sem requinte que não se lembra do momento anterior nem planeja o momento seguinte.
Meu vizinho, sim - ao alto de seus oitenta e tantos anos, possui a faculdade de lembrar e planejar. Ele é presumidamente uma estrutura organizacional superior ao galo, que, embora envelhecida e enrijecida por uma vida de desamor, é sem dúvida capaz de calcular o peso da dor.
E é capaz inclusive de pensar filosoficamente, sendo, portanto, embora um tanto decadente, capaz de criar e fazer o bem. Mas o velho, que já não prestava quando era neném, escolheu ser daqueles velhos capazes de fazer um inferno da vida da gente.
Meu vizinho que não presta embora pudesse prestar não goza daquilo que terceira vida, a vida mística e religiosa lhe permitiria gozar. Ao alto de seus oitenta e tantos anos, quando a vida se esmera em distingui-lo do simplesmente humano, ele vive ao contrário da vida.
Livre dos afetos e das paixões, esse monte de carne e ossos não busca a sublimação, desconhece o que João chamou de o segundo espírito, e com um galo no quintal, projeta a mim todo o mal, por ser mau ou por talião – não contra a mim, que de antemão nada o fiz, mas contra o mundo que, vai saber...
Só me resta, contudo crer que ele pensa ser eu sujeito de alguma ofensa. E que a sua vida de desamor e outra doença qualquer que não me diz respeito, dá-lhe o direito de roubar-me o sono por meio de um galo idiota. Eu me calo a refletir, tendo o sono perdido, sobre o que o faz pensar que deve um suposto ofensor sofrer o mesmo mal que ao ofendido imputa.
Mas calma aí! Jamais gritei ao ouvido deste filho da puta!
A mim resta então viver neste acordar desesperado e me por a escrever para não arder em raiva, como numa forma de oração. Eu jamais terei o velho por irmão - este engenho improdutivo desumano. Talvez lhe reste pouca vida, espero que menos de um ano. Mas já que não tenho tempo para odiar, e já que tenho muito tempo para transcender e transigir, deixo a raiva dormir comigo. Assim eu calo e eu espero. Afinal, não fosse o vizinho seria outro o inimigo. E não fosse o galo, seria outro bicho, o caminhão do lixo ou até mesmo o quero-quero.
Drigo
O pobre galo não é mau, nem é nada. Ele não cria nem destrói sociedades, ele não ameaça nem oferece salvação. Ave burra e sem requinte que não se lembra do momento anterior nem planeja o momento seguinte.
Meu vizinho, sim - ao alto de seus oitenta e tantos anos, possui a faculdade de lembrar e planejar. Ele é presumidamente uma estrutura organizacional superior ao galo, que, embora envelhecida e enrijecida por uma vida de desamor, é sem dúvida capaz de calcular o peso da dor.
E é capaz inclusive de pensar filosoficamente, sendo, portanto, embora um tanto decadente, capaz de criar e fazer o bem. Mas o velho, que já não prestava quando era neném, escolheu ser daqueles velhos capazes de fazer um inferno da vida da gente.
Meu vizinho que não presta embora pudesse prestar não goza daquilo que terceira vida, a vida mística e religiosa lhe permitiria gozar. Ao alto de seus oitenta e tantos anos, quando a vida se esmera em distingui-lo do simplesmente humano, ele vive ao contrário da vida.
Livre dos afetos e das paixões, esse monte de carne e ossos não busca a sublimação, desconhece o que João chamou de o segundo espírito, e com um galo no quintal, projeta a mim todo o mal, por ser mau ou por talião – não contra a mim, que de antemão nada o fiz, mas contra o mundo que, vai saber...
Só me resta, contudo crer que ele pensa ser eu sujeito de alguma ofensa. E que a sua vida de desamor e outra doença qualquer que não me diz respeito, dá-lhe o direito de roubar-me o sono por meio de um galo idiota. Eu me calo a refletir, tendo o sono perdido, sobre o que o faz pensar que deve um suposto ofensor sofrer o mesmo mal que ao ofendido imputa.
Mas calma aí! Jamais gritei ao ouvido deste filho da puta!
A mim resta então viver neste acordar desesperado e me por a escrever para não arder em raiva, como numa forma de oração. Eu jamais terei o velho por irmão - este engenho improdutivo desumano. Talvez lhe reste pouca vida, espero que menos de um ano. Mas já que não tenho tempo para odiar, e já que tenho muito tempo para transcender e transigir, deixo a raiva dormir comigo. Assim eu calo e eu espero. Afinal, não fosse o vizinho seria outro o inimigo. E não fosse o galo, seria outro bicho, o caminhão do lixo ou até mesmo o quero-quero.
Drigo